quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Manchester City e o Fair Play Financeiro. Mais uma vez

No começo do mês de novembro o jornal alemão Der Spiegel, juntamente com site Football Leaks, fez uma série de reportagens de como o Manchester City utilizou de atividades contábeis pouco usuais para inflar seu balanço financeiro e não ser punido pela UEFA por quebrar as regras do Fair Play Financeiro implantado pela entidade de futebol europeia. 

Para quem não está familiarizado com o termo, o Fair Play Financeiro (FPF) é um conjunto de regras que visa impedir que os clubes gastem muito mais que arrecadam e tenho prejuízos sucessivamente. O limite de contas no vermelho começou em 45 milhões de euros por temporada e foi de 30 milhões em 2017/18, não sei se a partir dessa temporada 2018/19 clubes poderão ter prejuízos. O objetivo era evitar que muitos clubes fossem comprados e seus donos acabassem tendo lucro, mas o clube não. Times que sofreram com isso foram, por exemplo, Portsmouth da Inglaterra, Rangers da Escócia, Parma e Fioretina da Itália.

A regra é nobre porque se preocupa com a saúde financeira do clube e a própria UEFA se diz satisfeita porque os clubes, pela primeira vez, tiveram coletivamente lucro em 2017. Só que há outra visão possível de ter do FPF: serve para manter um grupo de elite de clubes, que já são os times que mais faturam, então tem orçamentos maiores para poder contratar. Hoje o Manchester City e o PSG fazem parte desse grupo, mas quando o FPF nascia, esses dois clubes lutavam para ganharem um convite para frequentar essas rodas.

Quando se falam nessa questão de receita e despesa, os "especialistas" tentam sempre comparar com o orçamento de casa, isso está muito errado. Primeiro o mercado de crédito para famílias e empresas é diferente, seja aqui ou no exterior, a taxa de juros de uma pessoa é maior porque não tem tanto bem para dar como garantia, uma empresa e governos tem. Outra coisa é que as famílias não podem emitir ações ou debêntures (são títulos de dívidas), já trabalhei em uma empresa que para se capitalizar vendeu debêntures de 112% da Taxa DI, que é uma taxa anual que está em 6,40% hoje, ou seja, a empresa pagaria juros de quase 7,2% num ano, o governo brasileiro está emitindo títulos do Tesouro Direito no valor de 4,93% a.a. mais IPCA, isso não daria volta de 10% ao ano. Alguém aqui consegue uma taxa crédito dessa? Por isso que uma empresa pode ficar no negativo porque é mais fácil ir no mercado e conseguir dinheiro.

No caso do Manchester City, a forma que a empresa controladora, a Abu Dhabi United Group (ADUG), achou que zerar o prejuízo do clube foi a emissão de novas ações no mesmo montante do prejuízo pelo City e seriam compradas pelo ADUG, o clube teria prejuízo, mas não fecharia no vermelho, digamos assim. E o clube emitiu bastante novas ações desde a aquisição em 2008.

Voltando ao assunto original, as acusações da Der Spiegel, elas falam que o clube trabalhou juntamente com os manda chuvas da UEFA na época ( Michel Platini e Gianni Infatino, presidente da FIFA hoje em dia) para que não houvesse nenhum tipo de punição. Mas como isso não foi possível, os advogados da UEFA e City chegaram num denominador comum onde o clube assumia a culpa e era multado, com uma parte voltando depois, e teria redução de elenco na edição de 2014/15 da Liga dos Campeões. Esses castigos seriam brandos para o tamanho da falta.

Essa conversa entre as partes não seria legal e isso que a Der Spiegel (DS) quer mostrar com os e-mails que receberam, segundo a DS de forma legal, do Football Leaks (FL). Eu acredito que o FL não tem intenção de prejudicar o Manchester City, isso não seria um objetivo de vida deles, eles denunciam clubes, o Real Madrid já sofreu com eles por causa de negociações de jogadores, e jogadores, Cristiano Ronaldo e a acusação de estupro. E outra coisa, não duvido nada que o City, e todos os outros clubes, tenta de alguma maneira driblar essas regras, times espanhóis foram punidos por contratação na base, tentaram se esquivar, mas não conseguiram.

Segue abaixo os links das matérias (em inglês) da DS:


Série "City  Exposto" em quatro partes:

parte 01  - Driblando as regras



parte 04 - Um império global 

A matéria inicial da DS é explicando a chegada de alguns países produtores de petróleo no futebol e como eles gastaram muito dinheiro para promover seus países, onde muitos casos os direitos humanos não são respeitados. Essa acusação não é nova, nunca li sobre usarem o City para lavar dinheiro, mas para lavar a imagem dos Emirados Árabes Unidos (EAU), onde fica Abu Dhabi, não seria a primeira vez.

Também nessa primeira parte os e-mails divulgados revelam que a consultoria PricewaterhouseCoopers (PwC), contratada pela UEFA, encontrou algumas irregularidades nos contratos assinados pelo clube, como por exemplo que 84%, lançados na conta outras receitas comerciais, deles eram assinados com empresas com alguma relação ao ADUG e com valores inflados em até 80%. Isso violaria uma das regras do FPF que fala que há limites de patrocínios, ou similares, das empresas que tem relacionamento com o dono do clube. Eu me lembro na época, o City tinha acordos comerciais com várias empresas dos EAU, como telefonia por exemplo.

E para piorar a situação, o clube escondeu da UEFA despesas que totalizavam 35 milhões de euros. O City tentou lutar, ameaçou até entrar com ação na União Europeia, mas em maio de 2014, o Ferran Soriano assinou o atestado de culpa e aquelas punições brandas foram anunciadas.

A parte que eu mais gosto dessa matéria inicial da DS é essa aí debaixo, foi o que eu falei ali em cima, sobre a tentativa da impedir a ascensão dos pequenos:


"Existem muitas boas razões para a introdução do FPF. Uma das mais persuasivas era da necessidade de proteger os torneios europeus de clubes da grande quantidade de dinheiro que chegava ao mercado do futebol vindo das oligarquias russas, bilionários americanos e xeiques do mundo árabe investindo em clubes de toda Europa. Clubes tradicionalmente ricos, que não queria ser comprados, não tinham como se defender contra os novos ricos e seu doping financeiro."

Resumo da nota: estavam com medo da concorrência. E o DS deixa bem claro isso.
A parte 01 começa contando um pouco da história de Manchester e do clube além do passado bucólico de Abu Dhabi antes das descobertas dos poços de petróleo. Mas também mostra um pouca da tendência da matéria quando fala que o City roubou/trapaceou para chegar ao topo. Olha, quando o clube começou a receber investimentos maciços não havia regras que impedisse o dono gastar rios de dinheiro. Quem começou a impor regras e manter os ricos no topo foi a UEFA com pressão do seu clubinho.

Dito isso, os e-mails mostram como a operação do City acontecia, sempre que o clube precisa de dinheiro ou novos contratos com empresas dos EAU eram assinados ou aqueles já existentes eram renovados com valores maiores e com cláusula de bônus. Um exemplo dado foi demissão de Roberto Mancini em 2013, que o clube precisou fechar um contrato de 9.9 milhões para pagar o técnico e não ter problemas contábeis com a UEFA.

Uma parte que eu destaquei dessa matéria 01 foi a explicação dada pela DS de como o clube gera dinheiro: 
Basicamente fala que se o time jogar um futebol de sucesso atrairá mais atenção das TVs que trará mais patrocínios e blá, blá, blá. Veja bem o City foi campeão com o melhor futebol da história da Premier League e teve dois jogos transmitidos a menos para o Reino Unido que United, Liverpool e Arsenal, e acabou recebendo menos dinheiro que o rival da cidade por isso. Na atual edição, com a divulgação de transmissões até a 24ª rodada, também tem dois jogos a menos na TV que os mesmos três times. Não é só futebol bonito que garante TV, esses três times não conquistam, ou nunca conquistaram, a Premier League tem tempo.


Há ainda o caso dos contratos serem pagos uma parte pela empresa anunciante e outra parte pelo ADUG. A Etihad, por exemplo, só pagaria 8 milhões de euros enquanto o ADUG entraria com 59.5 milhões de um contrato que era vendido com 67.5 só da companhia aérea, que por nota informou que é a única responsável por pagamentos ao City. Esse tipo de negociação valeria para outras empresas também.

Na parte 02 o que mais chamou a minha atenção foi a venda dos direitos de imagens dos seus jogadores para uma empresa externa no valor de 30 milhões. Eu tenho quase certeza que na época da divulgação do balanço que continha esse valor, a imprensa questionou e eu também porque era muito mandrake, ninguém conseguia explicar o quê era essa "venda", para piorar o balanço seguinte mostrava que essa "venda" tinha sido feita só aquela vez. E como funcionava? Simples uma empresa que ninguém nunca viu ou ouviu na vida resolveu pagar 30 milhões de euros. Aparentemente o ADUG injetou dinheiro nela e ela apenas repassou ao clube. Um analista da PwC perguntou como essa empresa teria retorno, funcionários do City não sabiam dizer e falavam que o "preço estava bom" por isso assinaram.

Já parte 03 falam da contratação do Guardiola, mas acho que se perdem um pouco na matéria aqui porque boa parte do texto se refere às violações dos direitos humanos nos EAU, um dos poucos países no mundo que não órgãos de direitos humanos atuando porque o governo/regime não quer. Sobre o Guardiola falam que ele assinou o contrato em outubro de 2015, então quando Pellegrini deu aquela entrevista em fevereiro de 2016 anunciando sua saída, a coisa já tinha acontecido há bastante tempo.

A parte 04 descreveu o império global que City e o ADUG estão criando com times em várias partes do mundo onde eles podem dar experiência ou valorizar seus jogadores contratados, estilo Farms Teams do Baseball. Mas também usariam esses clubes para esconder custos com salários.

Mancini receberia menos pelo City do que pelo Al Jazira, onde prestou serviços de consultoria técnica durante seu tempo em Manchester. Eu já tinha levantado a bola sobre um caso parecido, entre a família Guardiola e o Girona. Até o momento tudo continua apenas como especulação minha, mas não descarto que encontrem conversas mais profundas sobre essa relação.

Em geral acho a matéria boa, se provados que essas comunicações que eles obtiveram são verdadeiras. Não dá para passar pano para ninguém no futebol, muitas vezes a paixão acaba cegando, para mim não é difícil acreditar que houve esses dribles do City, com apoio da UEFA, tem torcedor que não acreditará, mas se a matéria fosse sobre um adversário, estaria rindo de orelha a orelha.

Eu acho que o FPF, o modo como foi implantado, facilitou demais a vida dos grandes, acaba impedindo a chegada de novos times, acho bastante difícil um clube conseguir entrar nesse grupinho, que o City agora faz parte, tanto que seu nome está ventilado como um dos criadores da SuperLiga de Clubes da Europa.

Para mim, a UEFA deveria deixar os clubes que não participam com frequência da Liga dos Campeões, torneio que dá dinheiro a rodo, terem um limite de gastos muito maior do que dos times que todo ano estão jogando e levando para casa, no mínimo, uns 20 milhões de euros a mais que seus rivais locais. Deveria haver uma tabela de valores relacionada a participação ou não de competições europeias.

A UEFA poderá abrir novamente esse caso se achar relevante o material. 

O Manchester City diz que a matéria visa denegrir a imagem do clube.

2 comentários:

  1. Boa matéria Borba mas cara hoje o City da lucro e atual temporada o time só comprou o Mares,só acho que tvz se clube não tivesse bombando,não estariam falando isso...
    Estes dias vi um Twitter que falava de clubes com ciúmes com o crescimento do City,,,e um deste era o Bayern de Munique que tvz estaria junto com Football Leaks para levantar coisa de 2013/14...
    Sem falar que clubes são empresas e seus donos podem investir nelas o que quiserem portanto existe mais o lado dos clubes grandes quererem se manterem no topo.
    Pra finalizar tb acho que tenha havido chance do City ter arrumado um meio pra borlar, mas o que importa é o bem para a instituição (clube),parabenizo vc por esta matéria, bem interessante msm.

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  2. O City teve lucro agora e a análise do FPF é do passado, então no período em questão estaríamos fora do FPF, o time fez o que tinha que ser feito para chegar ao topo, não conseguiria se gastasse menos que os adversários já estabelecidos.

    Teve uma matéria na Der Spiegel sobre o Bayern querer formar essa Superliga (um cartel de clubes isso, sou totalmente contrário, apesar do City fazer parte), que Bayern negou fazer parte, há acusações contra eles, agora o jornal de Alemanha talvez tenha preferência em não acusar times do seu país. Aí entraria a imprensa dos outros países para fazer parte do Football Leaks e denunciar problemas na Alemanha, o Football Leaks não seria fechado a nenhum país, a imprensa tem querer fazer parte.

    Eu também entendo que o clube é uma empresa, que o dono poderia gastar o que quisesse, mas em todos os setores da economia há um órgão fiscalizador, regulador, seria a UEFA no futebol europeu. Eles impediriam monopólio, duopólio, oligopólio e cartel no futebol, infelizmente eles não atuam para impedir o cartel, é só ver que houve pressão dos clubes para receberem um valor maior na Liga dos Campeões pelos históricos deles no torneio, algo que prejudica o City, único clube inglês há 8 seguidos na Liga. Não dá para deixar nenhum mercado correr solto, se não a gente vai ter um problema semelhante ao que aconteceu em 2008 nos EUA e afetou o mundo todo, claro em proporções consideravelmente menores.

    E obrigado mesmo pelos elogios!

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